O ano era 2020, quando tudo pareceu desmoronar. Começou com a ameaça de uma guerra mundial, e de repente, nos vimos em meio a uma pandemia. Entre debates políticos inúteis, crise econômica e uma crescente onda de descrença em tudo que se apresentava, eu relutava em admitir que tinha medo dos novos tempos. Um adulto fracassado, prepotente e arrogante que insistia em não aceitar a própria fraqueza, que acreditava cegamente que sozinho estava mais forte. Como sobreviver em tempos onde a maior arma da humanidade era a união, ainda que em distanciamento social? O medo do futuro estava me fazendo viver um dilema injusto, e eu sabia que as respostas estavam enterradas em meu confuso passado.
Tudo o que eu me lembrava, até então, era de que eu estava em quarentena, e isso já fazia alguns meses. Os dias passavam devagar, o trabalho em Home Office exigia de mim muito mais do que eu poderia imaginar, o que me afastou de tudo e de todos. Os poucos passeios eram para lugares e situações de extrema necessidade, e o contato social era mínimo, pelo menos era nisso que eu preferia acreditar. Eu já não assistia TV, pois tudo o que ela fazia era me assustar com notícias sensacionalistas duvidosas. Meu entretenimento se resumia em reviver o passado com DVD de filmes dos anos 2000, foi quando encontrei esquecidas fotos empoeiradas que ficavam em um cesto em cima do guarda-roupas. Os momentos estáticos vinham como flashes de memórias das quais pouco me recordava os sentimentos que senti, se é que, de fato, senti.
No dia anterior ao caso em questão, enquanto fazia minhas compras no mercado perto de casa, encontrei um amigo que há muito não via, muito antes da pandemia, inclusive. Não sei se tem algo a ver com a jornada na qual fui levado, mas é a única coisa que pode justificar os motivos de o garoto ter vindo até mim. Este meu amigo estava no setor de guloseimas acompanhado do que, eu imagino, que seja sua mulher e filho. Ele me viu, tenho certeza que olhou no fundo dos meus olhos, mas era como se não tivesse me enxergado mesmo eu estando a alguns passos dele. Eu estranhei a situação, entretanto, ignorei, como já estava acostumado a fazer. Só que isso não me livrou de pensar durante toda a noite no que tinha acontecido.
Então me vi ali, em um quarto de hospital onde sempre passava meus saudáveis dias, dessa vez, no entanto, estava doente e triste, enrolado em uma aura sombria. Sozinho, eu mal conseguia respirar. Ouvia as lamúrias distantes e sabia de quem eram. Eu tinha tanto a dizer a eles e tudo o que eu temia era não conseguir. Agora, eu me arrependia de ter colocado os meus próximos em risco por causa do meu ego inflado.
— Vamos logo! – Disse um garoto de, no máximo, sete anos, de cabelos castanho-claro cacheados. Sua voz era do tipo difícil de entender, baixa, rouca e “para dentro”. Suas pernas se movimentavam sem parar, deixando claro sua agitação.
— Quem é você? – Perguntei ao menino, com dificuldade e dor por conta do longo período no respirador, mas já sabia a óbvia resposta que me foi negada.
Ele sorriu e correu para corredor enquanto falava alguma coisa, suas palavras ecoavam no vazio espaço acompanhadas uma gargalhada. Eu não entendia direito o que ele dizia, estava cansado demais, mas tinha algo a ver com passado. Me esforcei para sair da cama, retirei algumas agulhas de soro do meu braço, e isso foi bem difícil. Fui para fora mais preocupado em ser visto com o pijama de hospital do que simplesmente ser ajudado por alguém. E quando botei os pés no corredor, estava na humilde sala da minha pequena casa.
O menino estava sentado no sofá assistindo um filme qualquer. Nos segundos em que eu fiquei ali parado, ouvi algum personagem dizer: “Quer se tornar um homem velho, cheio de arrependimentos, esperando para morrer sozinho?”. Aquelas palavras estavam na minha memória, eu só não sabia ao certo o porquê, mas conhecia seu significado. Então o garoto novamente se levantou e saiu, sem nem ao menos esperar por mim. Eu o segui para fora da minha casa, e ela estava isolada na vizinhança. As ruas estavam sujas e a neblina, que deu nome à cidade, estava densa e gelada e dificultava ver muito além. Senti o vento frio entrar na camisola de hospital e me arrepiar a espinha.
Será isso efeito da quarentena? – Pensei, tentando entender a realidade da qual minha racionalidade não permitia aceitar. – Já faz quase nove meses nessa situação, é justificável – esnobei, deixando me levar pelo sonho.
A criança seguiu névoa adentro rumo ao norte, mas antes deu uma olhada não muito contente para cima, onde havia nuvens negras. Porém, no resto do caminho, ele saltitava alegre, como se estivesse acostumado a toda aquela estranheza que se desenhava a nossa frente. Eu tentava segui-lo, mas, por várias vezes, tive que parar e descansar, além das dores e dificuldade respiratória, eu me sentia atrofiado.
— Sabe, aqui já foi um lugar bom. O sol sempre brilhava e eu tinha muitas pessoas para brincar – o garoto começou a falar com uma feliz nostalgia, que logo se tornou uma triste lembrança. – Eu não sei bem quando, mas alguma coisa aconteceu e tudo ficou frio e escuro, como se a vida tivesse ido embora.
Só Deus sabe o quanto eu queria não estar ali, ouvindo aquelas palavras que, para mim, eram tão dolorosas quanto a própria doença. Entretanto, eu, tão racional e calculista, não poderia levar aquele menino a sério. Era só um sonho brincando de pesadelo e querendo usar minhas culpas para me assustar.
— Por que está fazendo isso comigo? – Indaguei, com toda a frieza que me ensinaram a ter ao longo dos anos.
— Eu? – A criança riu, se esforçou para parecer engraçado, mas meu olhar sério destruiu aquele sorriso como se nada fosse. Ele retomou a caminhada, triste e cabisbaixo, chutando algumas pedras pelo asfalto. – Não sou eu que está fazendo alguma coisa contra você, eu nem poderia, na verdade.
— Onde, ou o que, é este lugar? – Segurei o fino braço com demasiada força e, sem querer, o machuquei. – Desculpe, mas responde logo, vai!
Eu vi seus pequenos olhos se encherem de lágrimas, sua pequena mão segurar o braço, não pela dor, mas pelo sentimento. Ele nem sequer tentou reagir, parecia acostumado com aquele tipo de desgosto. Respondeu em uma voz chorosa:
— Eu não sei, não sei nem quando cheguei – ele parecia temer as próprias palavras, e eu sabia que a culpa era minha. – Você deveria saber, isto é tudo por você..., tudo é sempre por você, para você ou de você – esbravejou.
Aquela gota de coragem fez meu coração sentir menos o peso do meu ato, ainda que não o suficiente para não me arrepender de ter agredido o menino.
— Desculpa de novo, eu não deveria ter segurado você – eu disse.
— Está tudo bem – o menino respondeu, mas eu via e sentia sua tristeza por ouvir as mesmas falácias de sempre. – Eu sei pelo que está passando.
O que ele quis dizer com aquilo?! – Pensei, mas ignorei de novo. Era só um sonho muito estranho, não era? Não, não era, mas eu não sabia ainda.
Eu e o menino caminhamos por um longo período, talvez por dias consecutivos. Fato é que eu havia chegado em outra cidade, em um antigo colégio técnico de aspecto assombroso. Um outro garoto nos esperava no pátio, era um adolescente magricela com cabelos cacheados escuros e um uniforme esfarrapado. Apesar da confusão de alunos, ele estava sozinho, sentado à beira de um palco no começo do espaço coberto pelas telhas de zinco quentes com o calor daquela região.
Assim que o viu, a criança correu e o abraçou como se já fossem amigos há muitos anos. Aquele era mais um rosto do qual eu não poderia ignorar, as feições reprimidas e o olhar confuso me julgavam com raiva. Havia ferimentos e hematomas ao longo de todo o corpo do adolescente, alguns, inclusive, pareciam autoinfligidos.
— Tem algo a me dizer? – Ele perguntou a mim em tom monótono.
Eu queria responder alguma coisa, mas não conseguia porque minha voz estava travada na garganta junto com o meu choro. Eu queria tanto dizer a ele que não importavam suas atitudes, que eu estava orgulhoso por ele ter resistido mesmo com seu jeito histérico de ser. Seria aquilo angústia? Eu não sabia o que estava sentindo, mas sabia o porquê aquele menino estava sem os amigos, e principalmente, o motivo de eu tê-lo sufocado em um passado apagado da memória.
A criança pegou na minha mão e apertou e, de alguma forma, me acalmou a ponto de interagir com o adolescente. Sacudi minha cabeça para os lados, soltei um “me perdoe” quase inaudível e com extrema dificuldade, não por dor dessa vez, mas por pura vaidade. Se aquilo era um teste, eu não fazia ideia. O garotinho sorriu, deixando os dentes tortos a mostra, disse:
— Ele é a ruptura mais importante em você, era o momento de maior fragilidade quando você o abandonou sozinho e no escuro. A gente sabe que você tinha medo, mas não precisava porque...
— Não! – Eu reagi sem nem perceber, silenciando a criança. Larguei a mão dela com desnecessária força, apontei o dedo em sua cara e completei: – Eu não tinha medo, não tenho medo de nada e nem de ninguém!
— Você tem medo de você mesmo – o adolescente rebateu, com a fúria saltando por seus olhos. – Para quem acha que está mentindo?!
Eu o empurrei, e ele me confrontou como deveria, me acertando um belo soco de direita. Não sei como, mas aquele golpe me fez cair. Eu acredito que foi exatamente o que eu merecia, pelo próprio choque de realidade.
A criança foi até mim no chão, a dispensei e me levantei sozinho. Eu queria ir para cima do adolescente e socá-lo, só que não tive coragem. Eu estava muito orgulhoso por ele ter me enfrentado, mas lutava para não demonstrar.
Nós três fomos para fora do colégio. Andamos por mais alguns severos quilômetros, até sentir a brisa quente se tornar fria novamente e a luz dar lugar a um apagado dia nublado. O garoto e o adolescente iam à frente, interagindo um com o outro o tempo todo, eu seguia mais atrás, me perguntando se sentia inveja. Paramos em frente a uma casa de quintal irregular, com uma rampa de acesso e uma escada amarela para dentro da residência. Era noite, e estava acontecendo uma festa de aniversário que me era muito familiar, ainda que eu não lembrasse de ter vivido aquilo.
— Vai lá, é para você. Deve ser forte agora, pode ser o momento mais difícil de se encarar. Foi para mim, pelo menos – disse o adolescente. – Nós vamos ficar aqui e esperar como sempre fizemos, volte quando terminar.
— Ainda tem um último lugar para ir depois daqui, tente não se entregar aos detalhes – avisou o garoto, com mais um daqueles sorrisos inocentes. – O próximo não é para te restaurar, mas para te motivar a não desistir.
— Pelo que eu me entregaria? – Questionei, tentando entender as peças que se formavam na minha mente. Notei que já não tinha mais tanta dificuldade para falar e que minha voz fluía muito melhor que em muitos anos. – Esse é o sonho mais estranho que eu já tive, com certeza – comentei, meio que para mim mesmo.
O adolescente sorriu, um sorriso ainda triste.
— Às vezes, são necessários dias ruins para nos lembrarmos dos dias bons, precisamos de solidão para valorizarmos a união, temos que sentir medo para medirmos nossas forças. Você esqueceu de tudo isso por muito tempo, mas está tudo aí dentro ainda – apontou para minha cabeça, de forma bem teatral.
Normalmente, eu riria daquela situação e usaria de chacota para uma brincadeira na qual apenas eu acharia graça, mas eu não consegui. Começava a suspeitar de que eu estava sendo fraco, não era coisa de homem. Eu queria entender o que estava acontecendo comigo, entretanto, algo me impedia de sair daquela fantasia, algo que desafiava minha inteligência e todas minhas crenças, até então.
Uma música que vinha da festa chamou minha atenção, uma que dizia sobre força, invencibilidade e amizade. Eu me virei para a rampa, hesitei algumas vezes, mas finalmente subi. Aqueles inúmeros rostos eram como fantasmas de fotografias, mas o invisível ali era eu. Aos poucos, fui reconhecendo os elementos daquele lugar, como a música de desenhos dos anos oitenta, os cabelos volumosos das mulheres e as roupas de inverno coloridas. Fui até a mesa, que estava cheia de docinhos e salgados claramente feitos em casa e um bolo com a foto de um bebê de cachos loiros. Uma senhora arrumava as velas, ela vestia um característico conjunto rosa avermelhado social. Da escada, desceu uma mulher de cabelos pretos carregando uma forma com pãezinhos ao molho de salsicha e uma garrafa de refrigerante. Tentei desviar para ela passar, mas tropecei no tripé de uma gravadora de VHS com uma luz forte e quente. Nenhuma das minhas ações ou reações faziam diferença para as pessoas, e por isso eu me perguntava qual era o meu papel naquele lugar. Claro, eu já sabia a resposta desde que havia colocado os pés na rampa, estava bem óbvia, mas meus anos de escuridão me faziam desdenhá-la.
Foi então que outra mulher apareceu no alto da escada, uma morena e magra, com cabelos cacheados tão volumosos quanto todos os outros. Ela carregava o bebê aniversariante e, por alguma razão, era a única que conseguia me ver. Ambos ficamos estáticos, se encarando com estranheza e, talvez, medo. Ela veio até mim, mas eu não conseguia falar, por mais que tentasse com todas as minhas forças.
— Então, você voltou para nós – ela disse, com um sorriso que me disparava tantas emoções que eu nem ao menos conseguia entender. – Fiquei com medo de que nunca fosse acontecer, de que já estivéssemos totalmente esquecidos.
Minha voz não saía, ainda que a mulher já houvesse entendido o que minhas lágrimas queriam dizer. Eu me vi chorando ao ponto de soluçar, como nunca havia chorado antes, muito menos depois de adulto. O bebê estendeu os braços para mim, então eu o peguei e segui para fora, para onde os outros me esperavam entusiasmados.
O adolescente pegou o bebê dos meus braços, balançou-o.
— Volte e faça o que tem que fazer, não vai querer levar mais isso para seu futuro. Chega de arrependimentos, certo? – Ele disse.
Eu subi a rampa correndo, desviando dos que apareciam na minha frente, estava determinado a não fraquejar uma vez mais. A mulher de cabelos pretos me abordou, oferecendo pão e a senhora cortando o bolo gritou, perguntando se eu queria mais um pedaço. Me senti tão triste por não ter vivido aquele momento como deveria quando aconteceu, tudo o que consegui foi agradecer e seguir para a morena. A abracei como tinha que ter feito muitas vezes antes.
— Me desculpe por não ter sido tão bom quanto você merecia – eu disse de uma vez só, e agradeço por isso ou eu não teria conseguido falar.
De forma tão graciosa, ela sorriu.
Caí em um profundo choro. Corri dali dando uma última olhada para trás e tendo um vislumbre do mesmo bebê com glacê no rosto, como um palhaço, no colo de um homem. Estavam cercados por várias outras pessoas, de forma tão simples, mas tão genuína, que era impossível ignorar.
— Foi uma lembrança? – Ouvi a criança perguntar.
— Foi sim – respondeu o adolescente. – Está funcionando.
— Devemos levar ele para a rua?
— Com certeza, mas na hora certa. Senão nosso esforço não vai servir de nada além de mais um plano frustrado – o adolescente estava realmente feliz que nem se importou com a minha aproximação. – Ele precisa querer mais do que nós.
— Do que estão falando? – Perguntei, mas fui ignorado, e foi horrível.
Limpei o nariz na gola da camisola de hospital, como uma criança teria feito, não um adulto respeitável que tentava impressionar todo mundo. Percebi que eu nunca teria feito aquilo, mas eu fiz, algo estava mudando em mim.
Continuamos caminhando, seguindo a criança pelos arredores de um lago até uma área de classe média, paramos diante de um prédio todo enfeitado para o natal. O garoto me pediu para olhar o apartamento à direita do nono andar, parecia estar longe, mas eu via com tanta clareza que parecia estar no portão de uma casa. Um casal de idosos brincavam com duas crianças na sala, havia uma silhueta feminina e outras três masculinas no cômodo, duas rechonchudas e um mais atlético. As sombras não me pareciam conhecidas, fiquei em silêncio, admirando suas vidas tranquilas. Eu tinha um inexplicável apresso por aquelas pessoas.
— Está pronto para o recomeço? – Perguntou o adolescente, pegando o bebê dos meus braços. – A vida que você nunca imaginou que teria te espera.
Sinalizei positivamente com a cabeça, já não tinha mais autoridade para questionar o sonho e seus elementos. Fui até a portaria e entrei no prédio, os portões se abriram como se já fosse conhecido dos moradores. Cheguei no apartamento 21, apertei a campainha e esperei ser atendido.
O homem de porte mais atlético abriu a porta, era careca e vestia roupas comuns demais para alguém que morava em um lugar como aquele. Eu vi seu sorriso atrás da máscara, parecia que acabara de ganhar um presente.
— Você veio, é tão bom te ver – ele disse com seriedade, em uma voz grave, mas calma a ponto de transmitir a paz que sentia. – Ainda bem que deu tempo.
— O que eu fiz para você? – Perguntei, e dessa vez eu realmente estava em dúvida, pois nada remetia a uma memória esquecida.
O homem passou a mão no pescoço, e eu vi uma marca bem clara do que parecia ter sido feito por uma corda.
Mesmo depois de toda aquela jornada, eu não conseguia acreditar nas consequências dos meus atos que, graças a quarentena, estavam sendo esfregadas na minha cara. Senti meus batimentos aumentarem, as lágrimas escorrerem e o ar me faltar novamente. Tentei engolir o choro, mas tudo era intenso demais para alguém que havia suprimido os sentimentos por longos anos. A frieza, que por tanto tempo me protegeu nos dias mais difíceis, agora estava trincada e deixava vazar uma luz branca.
O homem abriu o caminho e assoviou para trás.
— PAI! – Gritou uma criança segundos depois, na entrada da sala.
— Pai?! – Eu repeti sem a menor intenção, olhei para o adulto que me encarava com tanta alegria que era praticamente contagiante. – Eu vou ser pai?
A criança veio pelo corredor como deveria ser, correndo, e se escondeu atrás da perna do homem de meia-idade. Eu me abaixei na esperança de enxergá-la melhor, não devia ter mais do que seus cinco anos. Senti algo surgir em minha mão, era uma máscara de tecido caseira com o símbolo de um super-herói qualquer. Eu a ofereci para a criança, que se aproximou com cautela para que eu mesmo a colocasse em seu rosto, e ela limpou uma lágrima do meu. Então pude ver o sorriso através de seus olhos antes de saltitar de volta para dentro da casa.
Eu queria ter pedido desculpas a ela por eu ter sido tão calculista, mas tais palavras nunca sairiam. Queria pedir perdão ao homem por tê-lo matado antes mesmo de ter vivido, mas também questionava minhas capacidades. Naquele momento, entendi que meu medo era não ser bom o suficiente para as pessoas, até que o isolamento me mostrou o que realmente estava em jogo.
— Você está pronto para seguir em frente – afirmou o homem, com a convicção de um continente sobre o mar.
Eu me levantei, com os olhos cheios de lágrimas e um nó doloroso na garganta que lutava para não descer. Vi os outros chegarem no corredor do prédio, todos estavam felizes, e percebi que eu também estava. Atrás deles vinha um cãozinho preto e amarelo todo animoso, que também remetia a memórias, porém, mais recentes.
— Nós temos mais uma surpresa para você – disse a criança, dessa vez ele carregava o bebê, mesmo que com certa dificuldade.
— Não se constrói uma fortaleza apenas colocando pedras umas sobre as outras, e nem se restaura um vaso sem uma boa cola – disse o adolescente. – Nós juntamos seus pedaços, e agora temos a cola certa para você nunca mais quebrar.
O menino olhava para mim e para o cão, sugerindo-o com a cabeça enquanto balançava o bebê. Eu queria saber o que estava por vir, não hesitei em fazer o que ele me pediu. Na coleira do cachorro havia dois dados de seis lados, e os peguei.
Já não estávamos mais no prédio, era uma rua não muito larga, com o asfalto deteriorado e cheio de pedras soltas. Senti o nostálgico incômodo na sola dos meus pés descalços. Havia árvores grandes nas calçadas dos dois lados, ótimas para subir se a idade ainda me permitisse. Também havia um círculo que algum grupo de amigos deixou por ali, bem embaixo de um poste alto com uma luz fraca. Tinha uma pasta com desenhos de personagens e descrição de habilidades e poderes, e outros papéis com tópicos de estórias de fantasia ou aventura, além de tijolos.
Eu me aproximei e sentei em algum daqueles tijolos, senti os dados em minha mão. Era uma lembrança na qual eu sempre visitava.
— Você se lembra desse lugar, não é? – Indagou o adolescente. – O lugar e o período foram muito valiosos. Foi aqui onde aconteceu a segunda ruptura, e a mais importante, com certeza – olhou com tristeza para o garoto.
— Foi onde separou ele de mim – a criança completou. – A culpa não foi sua, claro, nem tinha poder para lutar contra, mas devia ter tentado entender que a vida é assim – o menino pegou uma das fichas. – Bom, aconteceu, temos que reparar.
Eu ouvi alguns passos pisarem nas folhas secas. De repente, eu estava sozinho, até uma silhueta conhecida se aproximar. Era aquele amigo que encontrei no mercado no dia anterior, mas uma versão criança dele, que tinha a minha idade naquela época. Quando me dei conta, a minha aparência também era a de uma criança.
— Acho que é a sua vez de jogar – ele disse, e outros três apareceram e se sentaram nos tijolos ainda vazios, mas estes pareciam não me ver. – Da última vez que se recusou a jogar, tudo acabou, então não fique enrolando.
Eu percebi que estava rindo, estava feliz de novo.
— Quanto tempo isso faz? – Perguntei.
— Ah, eu nem me lembro – ele riu. – Agora não faz diferença, é só uma história do passado que está te assombrando – pegou os dados da minha mão. – Perdeu a vez, eu jogo então – balançou-os na mão fechada. – Você sempre foi saudosista, isso te limitava além da sua criatividade – lançou os dados sobre a pasta. – Acertei o ataque. Sua vez agora, vai esquivar ou vai tentar se defender?
— Eu vou contra-atacar – respondi. Era o que eu deveria ter feito para encerrar a partida porque sabia que aquele seria nosso último jogo, mas não o fiz e nunca terminamos aquela aventura. – Sinto falta disso, sabia? A atualidade não nos permite ser tão..., espontâneos, talvez – dei de ombros. – E acredito que os próximos anos serão muito piores, mas o que posso eu fazer?
— Se adaptar – meu amigo respondeu. – Como eu disse, não pode ser tão saudosista, é ruim e, considerando os novos tempos, perigoso. Precisou de uma pandemia mortal para você desapegar do passado, isso é um absurdo – gargalhou. – E por favor, peço isso por todos os que estão aqui, não se quebre de novo.
— Pode deixar, não vai mais acontecer – eu respondi, com um sorriso nostálgico não intencional. – Nos vemos do outro lado?
Meu amigo consentiu.
Peguei a ficha que estava no chão à minha frente, o personagem tinha exatamente a minha aparência como adulto. Eu vi a criança e o adolescente com o bebê se aproximarem, vindo da esquina à esquerda. Acenei para eles como forma de despedida, apertei os dados na palma da minha mão, e então os joguei sobre a pasta.
Acordei no meu quarto, me sentindo completo pela primeira vez em muitos e muitos anos. Ouvia gargalhadas e conversas altas, as quais fui verificar antes mesmo de passar no banheiro. Notei as máscaras ainda nos rostos, as mãos molhadas e o álcool em gel no balcão da entrada, haviam acabado de chegar. As vozes exaltadas eram para uma chamada de vídeo mostrando os preparativos da ceia de natal para o grupo da família. Me questionei se ainda sonhava, porque ninguém havia estado em casa desde o começo da pandemia. E não que isso fosse problema, pois sabia que estavam bem, mas será que eu sabia mesmo? Começava a duvidar do que eu achava que sabia.
— Olha só quem acordou para ajudar! – Disse minha mãe, apontando a câmera para mim, tentei me esconder, como faria normalmente.
Ouvi minha família rindo e fazendo piadas do outro lado da tela, mas ainda não acreditava na veracidade daquele momento, mesmo que todos estivessem interagindo diretamente comigo. Foi só então que notei o óbvio, eles estiveram ali o tempo todo, estavam comigo quando eu fraquejei nas incontáveis vezes. Eu havia me deixado levar pelo medo da rejeição, escolhi viver só mais um personagem em razão de uma força emocional que pouco me ajudou. Percebi meus lábios esboçarem um sorriso lateral difícil demais de segurar.
— Já volto – avisei, e sai da cozinha.
Quando cheguei no banheiro e me olhei no espelho, não foi o adulto firme e arrogante que estava sendo refletido, mas a inocente criança de sete anos. O primeiro que eu sacrifiquei, e o único que foi capaz de ir até a origem do meu ser para me trazer de volta. Ele sorriu, exibindo novamente os dentes tortos.
— Por que veio atrás de mim? – Indaguei-o.
— Você me chamou, acho que sem querer, mas o fez – respondeu o menino, enquanto preparava a escova e a pasta de dente. – Eu não deveria saber explicar tudo isso, sou só uma criança, lembra? O sol voltou a brilhar e as pessoas vieram para brincar porque é seguro de novo.
— E agora? – Questionei, mesmo com medo da resposta.
— Agora eu não tenho mais nada a ver com isso – a devida resposta sincera de uma criança adulta. – Aproveite as possibilidades, elas são eternas.
O garoto abaixou para cuspir e enxaguar a boca, e quando voltou, era eu mesmo que estava no reflexo.
Não foram necessárias mais palavras para me dizer o que recomeço significava, pois havia me feito sentir na pele. Eu sentia uma feliz estranheza que não me deixava quieto, meu medo havia ido embora e minha voz estava mais clara. Eu conseguia falar e ser ouvido, ver e ser visto, sentir e ser sentido.
Sim, a quarentena, e todos os temores que com ela vieram, me fizeram olhar mais para o passado do que para o futuro. Olhar mais para as pessoas do que para as coisas. Dar mais atenção para meus medos do que às minhas armas. Eu não sabia explicar, mas sabia que tudo o que precisava estava na cozinha da minha casa e no outro lado de uma tela trincada. Não estava envolto em fé, mas em humanidade.
À meia noite daquele mesmo dia, algo que eu nunca imaginaria acontecer estava diante dos meus olhos. A mesa posta com farta comida, todos sentados e ouvindo os agradecimentos de alguém ali. Havia sim alguns convidados, mas em um dos cantos da mesa, um computador mostrava quase que a mesma imagem em algum lugar do país. A nossa vida já estava normalizada, as regras eram obrigatórias, mas não nos importávamos mais com os detalhes desde que estivéssemos todos juntos.
— ... agradecemos por nossas vidas, nosso futuro e que não nos falte esperança, amém – finalizaram a oração.
Aquela foi uma noite feliz, uma lembrança boa.
— Pai, acorda! – Exclamou uma criança ao pular sobre a cama de um homem careca, pegando o celular do mesmo. Ela estava com uma máscara caseira bordada com o símbolo de um super-herói qualquer. – Tem que termina de contar a estória do menino que salvou o homem, você prometeu.
— Victor, já disse para não ficar brincando com a máscara, vai acabar perdendo essa também – o homem rebateu, ainda reagindo à luz que entrava da janela de seu quarto. – Você já escovou os dentes? Tomou café? Viu se o cachorro tem ração?
— Não, a luz lá fora acendeu só agora – apontou para a janela, como uma inocente criança faria. – Me conta logo a estória.
O homem o olhou de soslaio. Disse:
— Hum, deita aqui que eu vou contar o resto que falta. Onde eu parei?
A criança pegou o dedo do pai e colocou no leitor de digitais para abrir o aparelho. Procurou o bloco de notas, então passou para o homem.
— Aqui, ó – mostrou a tela, que exibia um pequeno texto. – Era quando o homem estava no hospital e a criança foi lá pra levar ele.
— Ah, é verdade – disse o pai. – Tenta ler a primeira linha, então.
— O, ano, era, vinte-vinte – disse o menino, com muito esforço.
O homem riu. Então corrigiu-o:
— Dois mil e vinte, viu que tem quatro casinhas? Sim, era 2020 quando tudo pareceu desmoronar – e continuou. – Foi doze anos atrás, em um mundo cheio de tristeza e escuridão. Começou com uma possível guerra, e logo depois veio a doença que matava os que desobedeciam...
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